Louise Glück
Louise Elisabeth Glück nasceu em Nova Iorque, a 22 de abril de 1943 mas cresceu em Long Island. Seus avós paternos eram judeus húngaros emigrados para os Estados Unidos décadas antes do seu nascimento. Cedo começou a ler poetas como Blake, Shakespeare, Keats, Dickinson e Yeats, com quem se identificou. Teve aulas de musica, ballet e arte. A sua vida foi marcada por uma série de problemas pessoais e familiares. Aos 16 anos começou a sofrer de anorexia nervosa tendo interrompido o liceu. Mais tarde, com a ajuda da psicoterapia que manteve durante 7 anos, conseguiu ultrapassar a doença, Teve aulas na Sarah Lawrence College e na Universidade Columbia, mas não chegou a finalizar a licenciatura. Aos 19 anos foi diagnosticada com epilepsia.
Aos 23 anos a New American Library publicou a sua primeira coleção de poesia, “Primogênito”(1968), iniciado aos 18 anos e rejeitado por mais de vinte editoras. Depois disso caiu em um período de intenso bloqueio criativo que durou até aos 30 anos.
A partir de 1971, começou a ensinar poesia no Goddard College em Plainfiel e a inspiração regressou, escrevendo vários poemas que se reuniram no seu segundo livro. The House on Marshland (1975)
Em 1980 um incêndio destruiu a sua casa em Vermont, perdendo todos os seus bens.
A sua poesia aborda a fragilidade essencial dos seres humanos, inspirando-se em mitos e clássicos da literatura.
© Daniel Ebersole
Obteve vários prémios como a “Medalha Nacional de Humanidades”, o “Pulitzer”, o “Prêmio Nacional do Livro”, entre outros. Em 2020 foi galardoada com o prémio Nobel da literatura “pela sua inconfundível voz poética, que, com uma beleza austera, tornou universal a existência individual”.
Principais obras:
Poesia: Firstborn (1968); The House on Marshland (1975); Descending Figure (1980);The Triumph of Achilles (1985); Ararat (1990); TheWild Iris (1992); The First Four Books of Poems (1995); Meadowlands (1997); Vita Nova (1999); The Seven Ages (2001); A Village Life (2009); Faithful and Virtuous Night (2014); Winter Recipes from the Collective (2021)
Ensaio (sobre poesia): Proofs and Theories (1994)e American Originality (1917)
Novela: Marigold e Rose (2022)
Glück continuou a escrever e a ensinar até o final da vida, por fim foi professora de poesia na Universidade de Yale em New Haven, Connecticut, e no programa de redação criativa da Universidade de Stanford.
As suas obras foram traduzidas diversas línguas.
Até à atribuição do Nobel, a escritora era praticamente desconhecida em Portugal. Havia alguns poemas: "O Poder de Circe", incluído na coletânea "Rosa do Mundo", editado pela Assírio & Alvim (2001) e "Landscape", na revista Telhados de Vidro, em 2006, numa tradução de Rui Pires Cabral.
A Relógio d'Agua tem publicado, desde 2020, consecutivamente, em edições bilingues, quase a totalidade da sua obra: "A Íris Selvagem" (2020) e "Vita Nova"(2021), traduzidos por Ana Luísa Amaral, "Noite Virtuosa e Fiel" (2020) e "Ararate"(2021), traduzidos por Margarida Vale de Gato, "Uma Vida de Aldeia"(2021), traduzido por Frederico Pedreira e "Averno"(2020), "Meadowlands" (2022), "Receitas de Inverno da Comunidade" e “Marigold e Rose” (2023) ,traduzidos por Inês Dias.
Louise Glück morreu no dia 13 de outubro de 2023, aos 80 anos, em Cambridge, Massachusetts, nos EUA.
Ler mais: wikipedia / autobiografia / 4 poemas / blogletras / pensador / 10 poemas I una biogragia Y tres poemas
Telemachus Dilemma
I can never decide
what to write on
my parents’ tomb. I know
what he wants: he wants
beloved, which is
certainly to the point, particularly
if we count all
the women. But
that leaves my mother
out in the cold. She tells me
this doesn’t matter to her
in the least: she prefers
to be represented by
her own achievement. It seems
tactless to remind them
that one does not
honor the dead by perpetuating
their vanities, their
projections of themselves.
My own taste dictates
accuracy without
garrulousness: they are
my parents, consequently
I see them together,
sometimes inclining to
husband and wife, other times
to opposing forces.
in Meadowlands
O dilema de Telêmaco
Nunca consigo decidir
o que escrever
nas lápides de meus pais. Sei
o que ele quer: ele quer
amado, o que por certo
vai direto ao ponto, particularmente
se contarmos todas
as mulheres. Mas
isso deixa minha mãe
a descoberto. Ela me diz
que isto não lhe importa
para nada; ela prefere
ser representada por
suas próprias conquistas. Parece
pura falta de tato lembrar aos dois
que alguém não
honra aos mortos perpetuando
suas vaidades, suas
projeções sobre si mesmos.
Meu próprio gosto dita
precisão sem
tagarelice; eles são
meus pais, consequentemente
eu os vejo juntos,
às vezes inclinado a
marido e mulher, outras a
forças opostas.
Parábola da fera
O gato anda em círculos na cozinha
com o passarinho morto,
sua nova possessão.
Alguém deveria discutir
ética com o gato enquanto ele
perscruta o débil passarinho:
nesta casa
nós não exercemos
a força deste jeito.
Diga isso ao animal,
seus dentes já
fundos na carne de outro animal.
The wild Iris
At the end of my suffering
there was a door.
Hear me out: that which you call death
I remember.
Overhead, noises, branches of the pine shifting.
Then nothing. The weak sun
flickered over the dry surface.
It is terrible to survive
as consciousness
buried in the dark earth.
Then it was over: that which you fear, being
a soul and unable
to speak, ending abruptly, the stiff earth
bending a little. And what I took to be
birds darting in low shrubs.
You who do not remember
passage from the other world
I tell you I could speak again: whatever
returns from oblivion returns
to find a voice:
from the center of my life came
a great fountain, deep blue
shadows on azure seawater.
in The Wild Iris
A ÍRIS SELVAGEM
No fim do meu sofrimento
havia uma porta.
Ouve‑me bem: recordo aquilo
a que tu chamas morte.
Por sobre mim, barulhos, ramos ondulantes de pinheiro.
Depois, nada. O sol fraco
a cintilar na superfície seca.
É muito duro sobreviver assim,
a consciência
sepultada na terra escura.
Depois, o fim: aquilo que se teme, ser
alma e incapaz
de falar, termina bruscamente, a terra hirta
curvando ‑se um pouco. E o que eu achei serem
pássaros lançando‑se em voo pelos ramos baixos.
A vós que não recordais
a passagem do outro mundo
digo ‑vos que eu poderia novamente falar: o que
regressa do olvido regressa
para encontrar uma voz:
do centro da minha vida brotou
uma fonte fresca, sombras em azul
profundo sobre o azul da água do mar.
Tradução: Ana Luísa Amaral
Long ago, I was wounded.
I learned
to exist, in reaction,
out of touch
with the world: I’ll tell you
what I meant to be-
a device that listened.
Not inert: still.
A piece of wood. A stone.
Why should I tire myself, debating, arguing?
Those people breathing in the other beds
could hardly follow, being
uncontrollable
like any dream-
Through the blinds, I watched
the moon in the night sky, shrinking and swelling-
I was born to a vocation:
to bear witness
to the great mysteries.
Now that I’ve seen both
birth and death, I know
to the dark nature these
are proofs, not
mysteries-
PARODOS
Há muito tempo, eu fui ferida.
Aprendi
a existir, reativamente,
sem contato
com o mundo: sempre te digo
o que pretendia ser —
um aparelho de escuta.
Não inerte: imóvel.
Um pedaço de madeira. Uma pedra.
Para quê cansar‑me a discutir, a argumentar?
Aquela gente a respirar nas outras camas
mal prestava atenção, escapando
ao controlo
como qualquer sonho —
Através das persianas, eu observava
a Lua no céu da noite, minguando, inchando —
Nasci para cumprir uma vocação:
dar testemunho
dos grandes mistérios.
Agora que já vi
o nascimento e a morte, sei:
na ordem das trevas estas
coisas são provas, não
mistérios —
tradução: Margarida Vale de Gato
1.
Once I could imagine my soul
I could imagine my death.
When I imagined my death
my soul died. This
I remember clearly.
My body persisted.
Not thrived, but persisted.
Why I do not know.
2.
When I was still very young
my parents moved to a small valley surrounded by mountains
in what was called the lake country.
From our kitchen garden
you could see the mountains,
snow covered, even in summer.
I remember peace of a kind
I never knew again.
Somewhat later, I took it upon myself
to become an artist,
to give voice to these impressions.
3.
The rest I have told you already.
A few years of fluency, and then
the long silence, like the silence in the valley
before the mountains send back
your own voice changed to the voice of nature.
This silence is my companion now.
I ask: of what did my soul die?
and the silence answers
if your soul died, whose life
are you living and
when did you become that person?
in Averno
1.
Assim que consegui imaginar a minha alma
consegui imaginar a minha morte.
Quando imaginei a minha morte
a minha alma morreu. Lembro-me
claramente disso.
O meu corpo resistiu.
Não se desenvolveu, mas resistiu.
Não sei porquê.
2.
Quando ainda era muito nova
os meus pais mudaram-se para um pequeno vale
rodeado de montanhas
naquilo a que chamavam a região dos lagos.
Da nossa horta
podíamos ver as montanhas,
cobertas de neve mesmo no Verão.
Lembro-me de uma espécie de paz
que não voltei a sentir.
Mais tarde resolvi
tornar-me artista,
dar voz a essas impressões.
3.
Já contei o resto.
Alguns anos de fluência, e depois
o longo silêncio, como o silêncio no vale
antes de as montanhas nos devolverem
a nossa própria voz
transmutada na voz da natureza.
Esse silêncio é agora o meu companheiro.
Pergunto-lhe: de que morreu a minha alma?
E o silêncio responde:
se a tua alma morreu, de quem é a vida
que estás a viver e
quando te tornaste essa pessoa?
tradução: Inês Dias
1.
- for Keith Monley
The sun is setting behind the mountains,
the earth is cooling.
A stranger has tied his horse to a bare chestnut tree.
The horse is quiet-he turns his head suddenly,
hearing, in the distance, the sound of the sea.
I make my bed for the night here,
spreading my heaviest quilt over the damp earth.
The sound of the sea—
when the horse turns its head, I can hear it.
On a path through the bare chestnut trees,
a little dog trails its master.
The little dog-didn’t he used to rush ahead,
straining the leash, as though to show his master
what he sees there, there in the future—
the future, the path, call it what you will.
Behind the trees, at sunset, it is as though a great fire
is burning between two mountains
so that the snow on the highest precipice
seems, for a moment, to be burning also.
Listen: at the path’s end the man is calling out.
His voice has become very strange now,
the voice of a person calling to what he can’t see.
Over and over he calls out among the dark chestnut trees.
Until the animal responds
faintly, from a great distance,
as though this thing we fear
were not terrible.
Twilight: the stranger has untied his horse.
The sound of the sea—
just memory now.
2.
Time passed, turning everything to ice.
Under the ice, the future stirred.
If you fell into it, you died.
It was a time
of waiting, of suspended action.
I lived in the present, which was
that part of the future you could see.
The past floated above my head,
like the sun and moon, visible but never reachable.
It was a time
governed by contradictions, as in
I felt nothing and
I was afraid.
Winter emptied the trees, filled them again with snow.
Because I couldn’t feel, snow fell, the lake froze over.
Because I was afraid, I didn’t move;
my breath was white, a description of silence.
Time passed, and some of it became this.
And some of it simply evaporated;
you could see it float above the white trees
forming particles of ice.
All your life, you wait for the propitious time.
Then the propitious time
reveals itself as action taken.
I watched the past move, a line of clouds moving
from left to right or right to left,
depending on the wind. Some days
there was no wind. The clouds seemed
to stay where they were,
like a painting of the sea, more still than real.
Some days the lake was a sheet of glass.
Under the glass, the future made
demure, inviting sounds:
you had to tense yourself so as not to listen.
Time passed; you got to see a piece of it.
The years it took with it were years of winter;
they would not be missed. Some days
there were no clouds, as though
the sources of the past had vanished. The world
was bleached, like a negative; the light passed
directly through it. Then
the image faded.
Above the world
there was only blue, blue everywhere.
3.
In late autumn a young girl set fire to a field
of wheat. The autumn
had been very dry; the field
went up like tinder.
Afterward there was nothing left.
You walk through it, you see nothing.
There’s nothing to pick up, to smell.
The horses don’t understand it-
Where is the field, they seem to say.
The way you and I would say
where is home.
No one knows how to answer them.
There is nothing left;
you have to hope, for the farmer’s sake,
the insurance will pay.
It is like losing a year of your life.
To what would you lose a year of your life?
Afterward, you go back to the old place—
all that remains is char: blackness and emptiness.
You think: how could I live here?
But it was different then,
even last summer. The earth behaved
as though nothing could go wrong with it.
One match was all it took.
But at the right time-it had to be the right time.
The field parched, dry—
the deadness in place already
so to speak.
4.
I fell asleep in a river, I woke in a river,
of my mysterious
failure to die I can tell you
nothing, neither
who saved me nor for what cause—
There was immense silence.
No wind. No human sound.
The bitter century
was ended,
the glorious gone, the abiding gone,
the cold sun
persisting as a kind of curiosity, a memento,
time streaming behind it—
The sky seemed very clear,
as it is in winter,
the soil dry, uncultivated,
the official light calmly
moving through a slot in air
dignified, complacent,
dissolving hope,
subordinating images of the future to signs of the future’s passing—
I think I must have fallen.
When I tried to stand, I had to force myself,
being unused to physical pain—
I had forgotten
how harsh these conditions are:
the earth not obsolete
but still, the river cold, shallow—
Of my sleep, I remember
nothing. When I cried out,
my voice soothed me unexpectedly.
In the silence of consciousness I asked myself:
why did I reject my life? And I answer
Die Erde überwältigt mich:
the earth defeats me.
I have tried to be accurate in this description
in case someone else should follow me. I can verify
that when the sun sets in winter it is
incomparably beautiful and the memory of it
lasts a long time. I think this means
there was no night.
The night was in my head.
5.
After the sun set
we rode quickly, in the hope of finding
shelter before darkness.
I could see the stars already,
first in the eastern sky:
we rode, therefore,
away from the light
and toward the sea, since
I had heard of a village there.
After some time, the snow began.
Not thickly at first, then
steadily until the earth
was covered with a white film.
The way we traveled showed
clearly when I turned my head—
for a short while it made
a dark trajectory across the earth—
Then the snow was thick, the path vanished.
The horse was tired and hungry;
he could no longer find
sure footing anywhere. I told myself:
I have been lost before, I have been cold before.
The night has come to me
exactly this way, as a premonition—
And I thought: if I am asked
to return here, I would like to come back
as a human being, and my horse
to remain himself. Otherwise
I would not know how to begin again.
in Averno, 2006
1.
- para Keith Monley
O sol põe-se atrás das montanhas,
a terra arrefece.
Um estranho prendeu o cavalo a um castanheiro despido.
O cavalo está sossegado - volta a cabeça de repente,
quado ouve, ao longe, o som do mar.
Decido pernoitar aqui e
estendo a manta mais pesada sobre a terra húmida.
O som do mar -
consigo ouvi-lo, sempre que o cavalo volta a cabeça.
Num caminho por entre os castanheiros despidos,
um pequeno cão segue o dono.
O cão - não costumava ele adiantar-se,
puxando a trela, como se quisesse mostrar ao dono
o que vê ali, ali no futuro? -
futuro, caminho, chama-lhe o que entenderes.
Atrás das árvores, ao pôr-do-sol, +e como se um gtrande incêndio
ardesse entre duas montanhas
de tal modo que a nevre no precipício mais alto
parece, por instantes, arder também,
Escuta: no fim do caminho o homem chama.
A sua voz parece muito estranha agora,
a voz de uma pessoa a chamar o que não vê.
Chama vezes sem conta entre os castanheiros escuros.
Até o animal responder
tenuamente, de muito longe,
como se essa coisa que receamos
não fosse terrível.
Crepúsculo: o estranho soltou o cavalo.
O som do mar -
já só memória.
2.
O tempo passou, transformando tudo em gelo.
Sob o gelo, agitava-se o futuro.
Se caísses nele, morrias.
Era um tempo
de espera, de acção suspensa.
Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podias ver.
O passado flutuava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.
Era um tempo
dominado por contradições, como
eu não sentia nada e
eu tinha medo.
O inverno esvaziou as árvores, encheu-as outra vez de neve.
Como eu não conseguia dsentir, a neve foi caindo, o lago gelou.
Como eu tinha medo, fiquei imóvel;
a minha respiração era branca, uma descrição do silêncio.
O tempo passou, e parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se apenas;
podías ver como flutuava sobre as árvores brancas,
formando partículas de gelo.
Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se uma acção consumada.
Eu contemplava o passado a mover-se, uma linha de nuvens que se movia
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
conforme o vento. Nalguns dias
não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
mais imóveis do que reais, como uma pintura do mar.
Noutros dias o lago era uma folha de vidro.
Sob o vidro, o futuro marulhava,
modesto, convidativo:
tinhas de fazer um esforço para não escutar.
O tempo passou; chegaste a ver uma parte dele.
Os anos que levou eram anos de Inverno;
ninguém lhes sentiria a sua falta. Nalguns dias
não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo
foi perdendo a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de um lado ao outro. Depois
a imagem apagou-se.
Sobre o mundo
só havia azul, azul por todo o lado.
3.
No final do outono uma rapariga incendiou um camp de trigo. O outono
tinha sido muito seco; o campo
ardeu como palha.
Não sobrou nada depois
Quando o atravessas, não vês nada.
Não há nada para colher, para cheirar.
Os cavalos não entendem;
Parecem dizer: onde está o campo?
Como tu ou eu diríamos:
onde está o nosso lar?
Ninguém sabe responder-lhes.
Não sobra nada;
resta-nos acreditar, a bem do lavrador,
que o seguro vai pagar.
É como perder um ano da nossa vida.
Em que perderias um ano da tua vida?
Depois regressas ao velho lugar –
restam apenas cinzas: negrume e vazio.
Pensas: como pude viver aqui?
Mas era diferente, nessa altura
até no Verão passado. A terra comportava-se
como se nada de mallhe pudesse acontecer.
Bastou um único fósforo.
Mas no momento certo – teve de ser no momento certo.
O campo árido, seco –
a morte já latente,
por assim dizer.
4.
Adormeci num rio, acordei num rio,
sobre a minha misteriosa
incapacidade de morrer não posso contar
nada, nem
quem me salvou ou porquê -
Havia um profundo silêncio.
Nenhum vento. Nenhuma som humano.
O amargo século
tinha acabado,
o glorioso, o duradouro, tudo perdido,
o sol frio
permanecia como uma curiosidade, uma lembrança,
com o tempo a correr atrás dele -
O céu parecia limpo,
como costuma estar no Inverno,
a terra seca, inculta,
a luz oficial rescoacva-se
serenamente por uma ranhira no ar,
digna, complacente,
dissolvendo a esperança,
submetendo imagens do futuro a sinais dacpassagem do futuro -
Creio que devo ter caído.
Estranhando a dor física.
precisei de fazer um esforço para me levantar -
Tinha esquecido
a dureza destas condiçõe:
a terra não obsoleta
mas imóvel, o rio gélido, baixo -
Do meu sono não recordo
nada. Quando gritei,
a minha voz acalmou-se inesperadamente.
No silêncio da consciência perguntei-me:
porwque rejeitei a minha vida? E respondo
Die Erde überwältigt mich:
A terra vence-me.
Tentei fazer uma descrição exata
para o caso dealguém me seguir. Posso garantir
que o pôr-do-sol no Inverno é
incomparavelmente belo e que a memória
dura muito tempo, Creio que isso significa
que não havia noite.
A noite estava na minha cabeça.
5.
Assim que o sol se pòs
cavalgámos depressa, na esperança de encontrar
abrigo antes de esciurecer.
Já conseguia ver as estrelas,
primeiro no céu a leste:
cavalgámos, assim,
para longe da luz e
em direcção ao mar, onde
ouvira falar de uma aldeia.
Passado algum tempo começou a neve.
Ao princípio não muitpo intendsa, depois
constante, até a terra
ficar coberts por uma película branca.
Quando voltei a cabeça, vi
nitidamente o caminho prercorrido -
por breves instantes deixava
uma trajectória sobre a terra -
Depois a neve acumulou-se, o rasto desapareceu,
O cavalo estava exausto, com fome;
não conseguia env«contrar
chão firme em lado nenhum, Disse para comigo;
já me perdi, já tive frio.
A noite já me chegou
exactamente assim, como uma premonição -
E pensei; se me pedirem
para aqui voltar, gostaria que fosse
enquanto ser humano, e que o meu cavalo
permanecesse o mesmo. De outro modo
não saberia como recomeçar.
tradução de Inês Dias
em Averno, relógoio D'Água, 2020
Hoje, pela primeira vez em muitos anos,
surgiu-me de novo
uma visão do esplendor da terra:
no céu do entardecer
a primeira estrela pareceu
tornar-se mais brilhante
enquanto a terra escurecia
até já não poder ficar mais escura.
E a luz, que era a luz da morte,
pareceu devolver à terra
o seu poder de consolo. Não havia
outras estrelas. Apenas aquela
cujo nome eu conhecia
pois na minha outra vida a
ofendera: Vénus,
estrela da tarde,
a ti dedico
a minha visão, já que nesta superfície vazia
derramaste luz suficiente
para tornar o meu pensamento
de novo visível.
tradução de Inês Dias
em Averno, relógoio D'Água, 2020
Sunset
At the same time as the sun’s setting,
a farm worker’s burning dead leaves.
It’s nothing, this fire.
It’s a small thing, controlled,
like a family run by a dictator.
Still, when it blazes up, the farm worker disappears;
from the road, he’s invisible.
Compared to the sun, all the fires here
are short-lived, amateurish—
they end when the leaves are gone.
Then the farm worker reappears, raking the ashes.
But the death is real.
As though the sun’s done what it came to do,
made the field grow, then
inspired the burning of earth.
So it can set now.
Pôr- do-sol
Ao mesmo tempo que o Sol se pôe,
um camponês queima folhas mortas.
É nada, este fogo.
É coisa de pouca monta. controlada,
como uma família a mando de um ditador.
Ainda assim, quado as labaredas se levantam, o camponês desaparece;
da estrada, é invisível.
Comparados com o Sol, todos os fogos aqui
são efémeros, coisa de amadores -
acabam quando as folhas se extinguém.
Então o camponês reaparece, varrendo as cinzas.
Mas a morte é real.
Como se o Sol tivesse acabado aquilo a que veio,
tendo feito o campo crescer e depois
inspirado a queima da terra.
Para que agora se possa pôr.
tradução: Frederico Pedreira
Uma vida de Aldeia, Relógio D'Àgua, 2021
Crossroads
My body, now that we will not be traveling together much longer
I begin to feel a new tenderness toward you, very raw and unfamiliar,
like what I remember of love when I was young—
love that was so often foolish in its objectives
but never in its choices, its intensities.
Too much demanded in advance, too much that could not be promised—
My soul has been so fearful, so violent:
forgive its brutality.
As though it were that soul, my hand moves over you cautiously,
not wishing to give offense
but eager, finally, to achieve expression as substance:
it is not the earth I will miss,
it is you I will miss.
in A Village Life, 2009
Encruzilhadas
Corpo meu, agora que não viajaremos juntos por muito mais tempo,
começo a sentir por ti uma renovada ternura, muito crua e desconhecida
como aquilo que recordo do amor quando era jovem -
um amor que tantas vezes foi tolo nos seus objectivos,
mas nunca nas suas escolhas, nos seus ardores.
Demasiado exigido à partida, demasiado o que não pôde ser prometido -
A minha alma tem sido tão temerosa, tão violenta:
perdoa a sua brutalidade.
Como se fosse essa alma, a minha mão desliza cautelosa por ti,
não querendo ofender,
embora ansiosa, enfim, por conseguir expressar-se enquanto substância:
não é da Terra que irei sentir falta,
é de ti que irei sentir falta.
tradução: Frederico Pedreira
em Uma vida de Aldeia, Relógio D'Àgua, 2021
Confession
To say I'm without fear--
It wouldn't be true.
I'm afraid of sickness, humiliation.
Like anyone, I have my dreams.
But I've learned to hide them,
To protect myself
From fulfillment: all happiness
Attracts the Fates' anger.
They are sisters, savages--
In the end they have
No emotion but envy.
Confissão
Dizer eu não tenho medo--
Não seria verdade.
Temo a doença, a humilhação.
Como qualquer pessoa, tenho os meus sonhos.
Mas aprendi a escondê-los,
Para me proteger
Da realização: toda a felicidade
Atrai a ira do Destino.
São irmãos, selvagens--
No fim, não têm
Outro sentimento senão inveja.
versão: at
Lago na cratera
Houve uma guerra entre o bem e o mal.
Decidimos que o corpo era o bem.
Isso fez da morte o mal.
E virou a alma
inteiramente contra a morte.
Como um soldado raso desejoso
de servir um poderoso guerreiro, a alma
desejou aliar-se ao corpo.
Virou-se contra as trevas,
contra as formas de morte
que reconhecia.
De onde provém a voz
que diz: e se a guerra
for o mal? Que diz:
e se foi o corpo que nos fez isto,
nos deixou com medo do amor?
tradução de inês dias
averno, relógio d´água 2020